Daniela de Souza Onça
Ano 04 - Nº 14 - Fevereiro de 2010
O Fórum Humanitário Global de Genebra, presidido por Kofi Annan, lançou em junho de 2009 um relatório intitulado The anatomy of a silent crisis, descrevendo todas as tragédias humanas provocadas pelo aquecimento global, como pobreza, fome, escassez de água potável, doenças e deslocamentos populacionais.
De acordo com o relatório, a ciência atual está plenamente segura da realidade das mudanças climáticas antropogênicas; porém os piores afetados são os países e pessoas mais pobres, justamente os menos culpados.
Eventos meteorológicos extremos, desertificação e elevação do nível do mar, exacerbados pela mudança climática, trazem consigo fome, pobreza, escassez de água potável, doenças e deslocamentos populacionais, reduzindo o crescimento econômico e impondo uma ameaça à estabilidade social e política. A mudança climática já afeta centenas de milhões de pessoas hoje e nos próximos 20 anos tais números mais que dobrarão, tornando a mudança climática o maior desafio humanitário de nosso tempo.
Entretanto, não é necessário possuir grande capacidade de raciocínio para saber que todos os graves problemas sociais e econômicos citados não são provocados pelas mudanças climáticas, mas sim pela estrutura excludente do sistema capitalista.
A incidência de malária não é provocada pela elevação das temperaturas globais, mas sim por programas ineficazes ou inexistentes de saúde pública. A incidência de diarréia não é provocada pela degradação ambiental, mas pela falta de saneamento básico.
A escassez de água potável não é provocada pela redução das precipitações, mas sim pela pressão crescente sobre recursos hídricos cada vez menos conservados.
A fome não é provocada por secas, mas sim pela pouca ou nenhuma renda disponível para a obtenção dos alimentos. A destruição das habitações não é provocada pela maior incidência de ciclones, mas sim pela precariedade das construções e pelo inadequado local de moradia.
Os deslocamentos populacionais não são provocados por alterações nos padrões meteorológicos, mas pela falta de perspectivas oferecidas nos locais repulsores.
A evasão escolar não é provocada por enchentes recorrentes, mas sim pela necessidade de complementação de renda de famílias empobrecidas.
As tensões entre grupos sociais não são provocadas pela desertificação, mas pelo desespero da exclusão econômico-social. Em suma, a pobreza e a miséria não são provocadas pelo aquecimento global, mas sim pela concentração de renda.
Outrora, o motivo alegado para a persistência da desigualdade social foi a ainda pouca disponibilidade de recursos; assim que as sociedades atingissem um nível suficiente de riqueza, ela automaticamente seria distribuída.
Pois bem, nosso planeta dispõe hoje de uma riqueza jamais sonhada em toda a história, e ainda assim os problemas sociais não vislumbram qualquer possibilidade de solução.
Pois bem, a humanidade jamais viu tão grande e tão acelerado desenvolvimento tecnológico como ao longo do século XX, e no entanto mais da metade das pessoas deste mundo ainda não possui acesso a inventos de séculos anteriores.
A persistência e o agravamento da pobreza e da miséria, apesar dos “tão abnegados esforços” da ONU e suas ações humanitárias e dos “tão eficientes” programas de distribuição de renda de diversos governos mundo afora, tem sido uma constante por uma razão muito simples: porque permanece uma constante a apropriação privada da riqueza socialmente gerada e o desinteresse em qualquer mudança qualitativa dessa apropriação.
E mais, se antes era possível, pelo menos em teoria, o colapso do capitalismo por meio do agravamento de suas contradições internas, é agora o próprio Estado quem se encarrega da árdua tarefa de garantir a continuidade e a saúde do sistema capitalista, salvando as empresas em dificuldade, regulando a dinâmica econômica e controlando as crises, frustrando sempre mais as expectativas de superação deste sistema.
Como este capitalismo e este Estado tão alinhados podem hoje, com este nível de riqueza e de tecnologia à disposição, justificar a continuidade e o agravamento da miséria global?
É simples: negando que ela seja o resultado da concentração de renda, da ação de uns poucos conglomerados industriais, e escolhendo a dedo um novo culpado: o aquecimento global.
É a estratégia perfeita para um sistema econômico e político cujo interesse primordial é se eximir da culpa por todas as tragédias que, apesar de toda a riqueza e tecnologia disponíveis, ainda assolam a humanidade, atribuindo-a a um fenômeno pouco compreendido, e por isso mesmo temido e fácil de justificar qualquer mudança ou problema ambiental ou social.
Hoje os revezes do clima constituem a mais perfeita justificativa para a ONU explicar o agravamento da miséria. Não será por ineficiência ou desinteresse dela e dos governos, será por culpa do aquecimento global. E, como o Estado está trabalhando pelo combate ao aquecimento, adotando mecanismos de desenvolvimento limpo e aliando-se às empresas “verdes”, está diretamente trabalhando pelo combate a todos os problemas dele decorrentes – fome, pobreza, doenças... – assegurando dessa forma a integridade e o bem-estar de seu povo.
Dessa forma, ele fica dispensado de justificar sua não-atuação para a verdadeira solução desses problemas e de assumir a responsabilidade pelo seu fracasso. É a perpetuação da exclusão social travestida de comprometimento com as gerações futuras.
Daniela de Souza Onça: Doutora em Geografia Física, Departamento de Geografia - USP.
Fonte: Território Geográfico Online
Nenhum comentário:
Postar um comentário