sexta-feira, 7 de outubro de 2011

0046 - OTAN: FORÇA ARMADA DE UM "GOVERNO MUNDIAL"

Desde o final da Guerra Fria, a Aliança Atlântica vem buscando
novos oponentes e hipóteses para justificar a sua existência


Por Lorenzo Carrasco [*]
09/12/2010

O novo "conceito estratégico" da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), aprovado na cúpula da entidade em Lisboa, em novembro, pouco tem a ver com qualquer esforço de racionalidade estratégica, que seria ainda mais justificado pelo fracasso rotundo da mobilização "extrajurisdicional" em curso no Afeganistão. Na verdade, o que ele contempla é a retomada da pretensão de transformar a OTAN pós-Guerra Fria no braço armado de uma estrutura de "governo mundial", acalentada desde a década de 1990 pelo Establishmentoligárquico anglo-americano e seus parceiros europeus.

Portanto, não é no campo estratégico-militar que poderemos encontrar as motivações dos disparates emitidos na atual revisão do "conceito estratégico" da OTAN, prática encetada a cada dez anos. Na realidade os grupos de planejamento estratégico que elaboraram esses "novos" conceitos estão trasladando ipsis litteris a realidade do declínio do sistema colonial europeu, que resistiu a morrer durante o século XX, especialmente após a II Guerra Mundial, com o advento da Guerra Fria. Com o fim desta e sem um inimigo militar real, fora da paródia das guerras ao terror da família Bush, a OTAN, em profunda crise de identidade, busca a sua razão de ser em conflitos como o Afeganistão, uma maldisfarçada guerra pelo controle de uma região estratégica pelo seu vasto acervo de recursos naturais, a Ásia Central.

Na visão daqueles grupos hegemônicos, o descompromisso efetivo da Europa e dos EUA com uma reforma econômica e financeira mundial, para remover o presente sistema global de usura e especulação, não deixa outro caminho senão a imposição de uma estrutura de "governo mundial" para a manutenção do seustatus quo. De fato, as tentativas do atual governo estadunidense de trabalhar no exercício de um "poder suave" (soft power) estão chegando ao fim, devido à carência de uma proposta real de compartilhamento do poder mundial com mais atores, em uma perspectiva de um ordenamento de poder multipolar. Em tal contexto, o oponente central daquele sistema hegemônico não é o terrorismo (que, sempre vale recordar, é um método, e não uma entidade), mas a reemergência e consolidação de um sistema internacional baseado no poder soberano dos Estados nacionais.

Por isso, as novas pretensões da OTAN deixam para trás a velha "relação especial" EUA-Reino Unido e a redefinem para uma União Europeia (UE) pretensamente ampliada. A sua área de atuação, antes restrita à defesa europeia frente ao Império Soviético, se redefine para uma ação global contra todos os obstáculos aos interesses dos principais parceiros da nova "aliança atlântica", o que significa estender-lhe a área de influência ao Atlântico Sul. O ideal, ainda que utópico, desse novo conceito seria transformar a OTAN no braço armado do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Como se coloca na parte conclusiva da declaração assinada pelos chefes de Estado e governo em Lisboa:
A cooperação entre a OTAN e as Nações Unidas continua a proporcionar uma contribuição substancial à segurança, em operações em todo o mundo. A Aliança visa a aprofundar o diálogo político e a cooperação prática com a ONU, como estabelecido na Declaração ONU-OTAN assinada em 2008, que inclui:
- ligação ampliada entre os comandos das duas entidades;
- mais consultas políticas regulares; e
- cooperação prática ampliada no gerenciamento de crises em que ambas as organizações estejam engajadas.
Uma UE ativa e efetiva contribui para a segurança geral da área euroatlântica. Por conseguinte, a UE é uma parceira singular e essencial para a OTAN.
Uma Aliança para o século XXI. (...) Nós, os líderes políticos da OTAN, estamos comprometidos com uma renovação contínua da nossa Aliança, de maneira que ela possa cumprir o seu propósito de enfrentar os desafios de segurança do século XXI. Estamos firmemente comprometidos com a preservação da sua efetividade como a mais bem sucedida aliança político-militar do globo. A nossa Aliança floresce como uma fonte de esperança, porque ela se baseia nos valores comuns da liberdade individual, democracia, direitos humanos e mando da lei, e porque o nosso propósito essencial e permanente comum é salvaguardar a liberdade e a segurança dos seus membros. Estes valores e objetivos são universais e perpétuos, e nós estamos determinados a defendê-los por meio da unidade, solidariedade, força e resolução.
No decorrer do documento essa idéia é enfatizada de diversas maneiras:
2. Os Estados membros da OTAN formam uma comunhão de valores singular, comprometida com os princípios da liberdade individual, democracia, direitos humanos e o mando da lei. A Aliança está firmemente comprometida com os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas e o Tratado de Washington, que afirma a responsabilidade primária do Conselho de Segurança para a manutenção da paz e da segurança internacionais.
3. Os vínculos políticos e militares entre a Europa e a América do Norte têm sido forjados na OTAN desde a fundação da Aliança, em 1949; os laços transatlânticos permanecem tão fortes e importantes para a preservação da paz e segurança euroatlântica como nunca. A segurança dos membros da OTAN em ambos os lados do Atlântico é indivisível. Nós continuamos a defendê-los juntos, sobre a base da solidariedade, dos propósitos compartilhados e de uma razoável divisão de encargos.
Especificamente, em relação aos deslocamentos "extrajurisdicionais", o documento da OTAN os define como:
4. Segurança cooperativa. A Aliança é afetada por e pode afetar desdobramentos políticos e de segurança além de suas fronteiras. A Aliança se engajará ativamente no reforço da segurança internacional, por meio de parcerias com países relevantes e outras organizações internacionais; pela contribuição ativa ao controle de armas, não-proliferação nuclear e desarmamento; e por manter a porta ao ingresso na Aliança aberta a todas as democracias europeias que preencham os requisitos da OTAN.
Mais adiante, o documento enfoca uma área de atuação em conflitos fronteiriços e na garantia do abastecimento energético para as nações da OTAN, em qualquer parte do planeta (item que provocou uma firme posição contrária do ministro da Defesa do Brasil, Nelson Jobim):
11. Instabilidade ou conflitos além das fronteiras da OTAN podem ameaçar diretamente a segurança da Aliança, inclusive, pelo fomento do extremismo, terrorismo e atividades ilegais transnacionais, tais como o tráfico de armas, narcóticos e pessoas. (...)
13. Todos os países são crescentemente dependentes de redes de comunicação, transporte e tráfego vitais para o comércio, a segurança energética e a prosperidade internacionais. Eles requerem maiores esforços internacionais para assegurar a sua resiliência diante de ataques ou perturbações. Alguns países da OTAN se tornarão mais dependentes de fornecedores energéticos estrangeiros e, em alguns casos, de fontes e redes de distribuição estrangeiras. Na medida em que uma fração maior do consumo mundial é transportada através do globo, os fornecimentos energéticos se tornam crescentemente expostos a perturbações. (...)
19. Nós asseguraremos que a OTAN detenha todo o leque de capacidades necessário para deter e defender-se contra quaisquer ameaças à segurança das nossas populações. Por conseguinte, nós:
- desenvolveremos a capacidade de contribuir para a segurança energética, inclusive a proteção de infraestruturas energéticas críticas e áreas e linhas de trânsito, cooperação com parceiros e consultas entre aliados, com base na avaliação estratégica e o planejamento de contingências;
- manteremos os níveis necessários de gastos com defesa, de modo que as nossas Forças Armadas tenham os recursos suficientes.
A "nova" orientação da OTAN deixa claro que o Establishment oligárquico continua optando pela mais perigosa das duas alternativas ao impasse estratégico-político-econômico global: a admitir o estabelecimento e consolidação de um sistema internacional baseado na primazia dos Estados nacionais soberanos orientados por um princípio de justiça universal, prefere continuar investindo no crescentemente disfuncional sistema de "governo mundial" baseado no uso da força militar como principal instrumento de política internacional.

[*] Lorenzo Carrazco é jornalista e Diretor do Movimento de Solidariedade Ibero-Americana(MSIa). 


Fonte: MSIa

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