POR MARISA CHOGUILL
26-JAN-2011
Tratar seriamente da tragédia dos deslizamentos de terra no Rio implica em tratar da necessidade de reforma da terra no Brasil como solução para o problema dos assentamentos urbanos em zonas de alto risco. Esta não foi a primeira vez que tal tragédia aconteceu, e não será a última se medidas urgentes e efetivas não forem tomadas.
Aqueles que habitam zonas de risco por falta de outra opção pela qual possam pagar são sempre vítimas de desastres, como aconteceu nos recentes desabamentos de terra no Rio. Os ocupantes dessas zonas sabem do perigo que correm, mas não têm outra escolha. Somente uma política redistributiva da renda, incluindo a reforma da terra, poderia mudar essa situação.
O Rio é famoso por suas enchentes e deslizamentos de terra (1). Sua topografia irregular está associada a zonas de risco, isto é, zonas inadequadas para habitação por se situarem em áreas sujeitas a deslizamentos de terra, enchentes e outros desastres naturais. Assentamentos em zonas inadequadas ocorrem também nas áreas rurais, ladeando rios e mangues, ou em escarpas. Um sistema de prevenção de desastres em zonas de risco, como o proposto pelo governo federal, seria uma medida meramente paliativa. Poderia salvar vidas, mas as moradias dos habitantes mais pobres continuariam a ser destruídas.
Se, como informa o ministro da Ciência e Tecnologia, Aloizio Mercadante, existem "500 áreas de risco no país, com cerca de 5 milhões de pessoas morando nessas áreas, e outras 300 regiões sujeitas a inundações"(2), a escala do problema é enorme e exige uma solução radical, efetiva, não apenas uma medida paliativa.
Contudo, uma solução efetiva, neste caso, é necessariamente complexa; há muito a considerar se olharmos para outros aspectos do problema, como a estrutura da produção e da distribuição da renda no país, que resultam na expansão das metrópoles e no esvaziamento do campo.
Em outras palavras, não se trata apenas de fazer reforma urbana; é preciso considerar também a baixa renda da grande maioria dos atingidos por essa tragédia – razão principal pela qual ocupam (ou ocupavam) zonas de risco. A reforma urbana em si talvez pudesse ajudar a realocá-los, mas, não podendo atender a todas as necessidades de locação, não lhes garantiria emprego ou renda adequada.
E quanto à expansão das metrópoles, a idéia da descentralização urbana, vista como uma saída para se acalmar o crescimento desenfreado das grandes metrópoles e estimular a ocupação das cidades menores, não passa de utopia enquanto a terra não for redistribuída e os objetivos da produção nacional não forem repensados.
O que se precisa, de fato, é de uma política nacional de desenvolvimento abrangente, que seja a base de suporte de um planejamento integral com foco não apenas no output econômico das empresas, mas também na distribuição da renda, na distribuição da terra – urbana e rural – de forma adequada para que, gerando oportunidades, atenda aos interesses de todos, e não apenas aos de uma minoria.
Isso porque as cidades não são apenas locais de moradia e centros de atividades sociais e culturais. As cidades são essencialmente centros econômicos, postos de troca para a produção local e para as regiões produtivas que as cercam. São as atividades produtivas das cidades e do campo que viabilizam a adequada ordenação do território.
Sem reforma agrária, e sem um redirecionamento da produção nacional para o atendimento das necessidades básicas do povo, não haverá produção local suficiente para estimular as trocas econômicas nas vilas e cidades menores, e as estradas continuarão a ser meros corredores de transporte para as exportações e para os emigrantes rurais e urbanos em direção aos grandes centros.
No Brasil e na América Latina, desde o início da colonização européia, a ‘fazenda’ é o modelo social vigente e o ‘fazendeiro’ ainda é venerado como um ‘deus todo-poderoso’. Obviamente, as elites rurais, ‘proprietárias’ da terra, não querem mudanças.
Mas a terra deve ser um bem-social, deve ser distribuída de acordo com as necessidades da sociedade, como acontece na grande maioria dos países hoje desenvolvidos e que, há séculos, realizaram sucessivas reformas agrárias distributivas. Por exemplo: França e Suécia realizaram reformas agrárias no século XVIII; Finlândia nos séculos XVIII, XIX e XX; EUA, Dinamarca, Canadá e Grécia no século XIX; Irlanda e Japão nos séculos XIX e XX; China no século XX.
Em uma sociedade democrática como é a nossa hoje, tal questão precisa e deve ser examinada com atenção. Talvez possamos pensar a ideologia da ‘propriedade rural’, do ‘fazendeiro’, em termos de uma estratégia de realocação, estimulando a descentralização urbana.
A tragédia no Rio está a despertar um debate fundamental que precisa ser ampliado. Essa ampliação do debate somente ocorrerá à medida que nossa democracia se torne mais participativa, ampliando-se, e à medida que temas fundamentais passem a ser submetidos à população para sua análise e posicionamento, o que talvez somente seja possível através da democratização da comunicação no país, mas este é assunto para outro artigo...
É preciso alargar o horizonte das demandas – não se trata de requerermos reforma urbana, apenas, mas reforma agrária também; ou seja, ampla reforma da terra. Há mérito em nos lembrarmos da necessidade e urgência da reforma urbana, entretanto, ao fazê-lo, apenas nos acercamos timidamente da ainda mais abrangente e explosiva questão, realmente crucial e que precisa ser abordada simultaneamente: a questão da reforma agrária.
Notas:
1) Ver pesquisa de Sérgio Baptista de Araújo: http://aleosp2008.wordpress.com/2008/11/29/rio-de-janeiro-as-grandes-enchentes-desde-1711/
Marisa Choguill é arquiteta, PhD em planejamento urbano, consultora, professora e editora assistente da revista acadêmica Habitat International.
Fonte: Correio da Cidadania
Nenhum comentário:
Postar um comentário